terça-feira, janeiro 04, 2005

Viseu

Do outro lado da janela está frio.
Sento-me absorto, a esta mesa.
Atrás de mim, a escada. Do piso de baixo sobe uma voz cujas palavras não distingo, não sei se por não me preocupar em distingui-las, mas creio que sim. No piso de cima e, mais lá dentro, no piso em que estou, as pessoas já dormem. Ou então não dormem, ou então os quartos estão vazios. Não importa, porque a única consequência real que qualquer das situações tem em mim é eu não ouvir vozes deste piso ou do de cima.
Mais além, na continuação recolhida desta sala, um televisor emite sons desgarrados que ignoro talvez furtuitamente, pintalgando-me ocasionalmente o caderno.
Está lá gente por quem eu não dou e que não dá por mim. Estou tranquilo. À parte de estar só, estou tranquilo.
Tenho tempo para pensar em lágrimas.
Não há nada, por si só, de expressividade tão relativa quanto as lágrimas.
As lágrimas, quimicamente salgadas, por terem sal, por serem soluções aquosas de cloreto de sódio e eventuais sais que ignore. O cloro e o sódio desassociam-se e passamos a ter uma solução de iões cloro e de iões sódio, respectivamente Cl- e Na+. Dizia a minha professora de química.
O poeta, o romântico, dirá que as lágrimas que me escorrem são doces quando escorrem por sentir no meu o teu peito e que são amargas quando um de nós parte, triste que fico de não saber se serão suportáveis os segundos que passam até que te veja. Ainda que venhas rápido, que tenhas saído à rua por cinco minutos.
Einstein raramente se terá enganado (ainda que apregoasse as suas recorrentes dúvidas) e o tempo realmente é relativo. Cinco minutos, cinco anos, uma vida, três segundos, os centésimos que demoro a piscar os olhos... Não importa. Não te ver é não te ver. Ponto.
Deixe-se-me presumir livremente que as lágrimas que não são poéticas não são, na verdade, lágrimas.
Pordoem-me suspeitar que outras lágrimas, como resultantes de dores físicas, sejam corriqueiras.
São absolutamente espectáveis, não contiuem novidade de maior, não revelam sentimentos.
Dor todos podem sentir, a todos acontece.
Duvidarei da crença popular, estremamente retrógrada (porém mais recorrente que as dúvidas de Albert), de que um homem não chora...
Talvez algumas pessoas não chorem quando apunhaladas violentamente. Talvez... Querem saber a verdade? Matem-lhe um filho!
Ousarei dizer que neste mundo só um verdadeiro Homem (sendo este H suficiente maiúsculo para abarcar as verdadeiras Mulheres) tem dignidade suficiente para chorar lágrimas!
A diante, próximo do televisor, um resto esquecido e mal apagado de cigarro invade o ar em movimentos ascendentes quase helicoidais.
Aqui, a esta mesa, sento-me absorto.
E do outro lado da janela faz mais frio.


29 Dezembro, 2004

1 Comments:

Blogger Raquel Caldevilla said...

e não que o rapaz tb tem jeito para a prosa?
:P

4:39 da tarde  

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